A convocatória era lacónica. Poderia aplicar-se, com mera mudança de nome, a um exército de artistas de culturas diversas, em qualquer tempo: “É um dos maiores guitarristas contemporâneos e está de regresso a Portugal”.
Apenas três orações adicionais: “Al Di Meola, ao vivo no CCB, em Lisboa, a 9 de julho. O músico traz o seu último álbum, Elysium, que tem impressionado, mais uma vez, críticos e público. Uma extraordinária fusão de sons latinos e jazz, num concerto recomendado pela Smooth FM”.
Quando li estas palavras, tive a sensação de surpresa típica das nossas “sociedades de cansaço” feitas da ânsia constante de novidades: “O quê?! O Al Di Meola ainda faz tours?!”
Subitamente fiz as contas: este idoso nasceu em 1954, dois anos depois de mim (faz anos em 22 de julho). No mesmo dia, os jornais publicaram – coincidência formidável – uma foto do Ringo Star, na glória das suas 75 primaveras, totalmente impercetíveis, ao lado de uma elegante senhora loira. Que grande bofetão nas ninfetas ossudas, nos imberbes à la Bieber que fazem desmaiar as betinhas, para não falar nos berradores de músicas de Verão, rappers nascidos do chão e demais novidades do grande Zoo musical globalizado! No mesmo dia, dois Gerontes da música dos anos 70 a fazerem prova de vida é coisa que dá que pensar e encoraja.
Claro que não é possível subsistir desta forma brilhante sem mudar de pele. O nome é mal pronunciado por latinos (versão correcta ÁL DI MIOULA!), mas pertence a um virtuoso que deixou para trás a primeira encarnação eletrónica, que lhe valeu o prémio de Melhor Guitarrista em anos sucessivos. Nesse tempo, foi um destacado lança-decibéis em jatos berrantes, fundindo tudo com tudo durante mais de uma década.
Liguei-lhe nada nessa época em que tribalmente venerávamos Zeca Afonso e o hino do MFA.
Foi nos anos 80, quando ele se converteu à guitarra acústica, que desatei a acordar todos os dias ao som da Mediterranean Sundance, a vertiginosa primeira faixa do álbum mágico Friday Night in San Francisco, o best-seller do trio Paco de Lucia/John McLaughlin /Al Di Meola. O álbum seguinte Passion, Grace & Fire, um LP do mesmo trio gravado em estúdio, deitei-o fora de tão riscado pelo gira-discos. Idem o Casino e Splendido Hotel, que recomprei mais tarde sob forma de CD’s.
Não sei como nem porquê, perdi-lhe o rasto nos anos 90 e só no início do século XXI percebi que ele tinha mudado de novo de pele e de parceiros para sobreviver no tal mundo avesso às velharias, cheio de meteoros como a Amy Winehouse. Iguarias como The Grande Passion só as reencontrei no You Tube (quando desisti de comprar CD’s).
Olhando o CCB mais cheio de gente que tenho visto nos últimos tempos percebi logo que foi até ali uma assistência descaradamente intergeracional, quase por igual atenta e veneradora. Até nas cadeiras suplementares, entreo palco e a fila A, esteve sentada a prova de que nenhuma geração enjeita o Di Meola.Por tudo isto, fiquei com uma curiosidade danada de saber quem iria ao CCB ouvir “um dos maiores guitarristas contemporâneos”: os júlios-isidros-sempre-jovens? As meninas de 1978 agora avozinhas? Os putos hoje velhos que foram ao estrangeiro nos anos 80 ouvi-lo rebentar plateias com Paco de Lucia ao som galopante do jazz flamenco/fusão?
Não tenho a mínima ideia de como é feito o alinhamento de músicas que o mago vai tocar em cada país. Parco de falas, nada explicou, limitando-se a dizer um “obrigado” e a publicitar o novo álbum (Elysium), sem se aprisionar nele.
Um amigo sábio sentado ao lado soprou-me que o Al está em dieta de guitarra elétrica. Os anos passados a fabricar decibéis infernais deixaram-lhe uma valente tinnitus, mas não surdez, pelo que tem capacidade intacta. Optou por trazer a Lisboa uma formação minimalista, com dois asas, um nas cordas e outro na percussão, ambos sólidos q.b., não ofuscantes nem envergonhantes.
Em duas horas sem intervalo debitou sem falhas 16+2 faixas (estas últimas num encore que o público arrancou militantemente).
Começou com uma das músicas do seu clássico Infinite Desire, seguindo-se em velocidade alucinante outras dos álbuns The Grande Passion e Elysium.
Eu sempre achei que ele é impecável no ataque às cordas mas algo caótico na construção de composições. Os peritos deliciam-se a observar como ele toca a shred guitar (não o fez no CCB), mas o povo simples como eu quer melodias distintas e cantáveis. Só na sétima faixa isso ocorreu, com uma versão do Café 1930, do Piazzola, a quem Di Meola pediu desculpa pela reinvenção que iria praticar, jurando que lha transmitiria quando se encontrarem. A frase é algo macabra, provavelmente devida à aproximação do aniversário, mas infundada: a versão é notável e a melodia entoa-se com prazer. Na mesma senda, três Oldies but Goldies dos Beatles, gravadas em 2013 nos estúdios de Abbey Road: Blackbird, Because, And I Love You. Delicadas, as mais recentes composições (Stéphanie – dedicada à namorada – e Adore, ambas do álbum Elysium).
Acertei a 50% na adivinhação dos encores: previ bem um aldimeolizado Strawberryfields Forever depois, não foi o estrondoso e eléctrico Racing with Devil on Spanish Highway (um trio não chega!), mas sim a Mediterranean Sundance, esplendorosa como sempre, mas com omissão da guitarra insubstituível de Paco de Lucia.
A multidão, finalmente satisfeita, retirou-se em boa ordem.
Ite Al di Meola est, ou seja: está vivo e quase igual à foto da gloriosa noite em S. Francisco.
Não consegui chegar suficientemente perto para lhe perguntar: “Descontada a tinnitus, que é que tu tomas, pá? Que raio é que tu tomas?!”.
Reportagem José Magalhães e Joice Fernandes