A Porto Editora publica Autobiografia Não Escrita de Martha Freud, o novo livro de Teolinda Gersão, centrado na correspondência privada entre o famoso psicanalista e a sua mulher, especialmente nos seus longos quatro anos de noivado, entre 1882 e 1886. Um olhar crítico e perturbador sobre um dos grandes intelectuais do século XX.
Estiveram juntos mais de 50 anos e, no entanto, dela pouco se conhece para além da inabalável dedicação ao marido. Como é isso possível? Até que ponto a História foi injusta com esta figura? No seu novo romance, Teolinda Gersão ficciona que, lendo e relendo as cartas íntimas trocadas com o seu Sigi – mais de 1500, que acabaram guardadas ao acaso em velhas caixas –, Martha procura encontrar-se a si própria e ao complexo homem da sua vida. Em Autobiografia não escrita de Martha Freud, descobrimos a relação desigual entre os dois, as obsessões do criador da psicanálise, os vícios e as transgressões, a necessidade de atenção, a atração por fenómenos inexplicáveis como a telepatia e o oculto, a mania de dissecar tudo até à náusea e a indelicadeza extrema no trato, até mesmo com quem supostamente amava.
Uma narrativa assente na investigação e análise dessa correspondência diária que, ao longo dos tempos, foi ganhando múltiplas formas: cartas extensas e detalhadas que chegavam a ter 22 páginas, diários factuais, crónicas, aquilo a que a protagonista deste livro chamou um dia de «romance em episódios». «Procurei-me na relação contigo e para além dela, quis saber quem fui, quem sou agora, e como fui sendo até chegar aqui. […] Não te deixei destruir-me, fui tecendo um fio que me guiou para sair do labirinto, um pensamento atrás do outro, uma palavra atrás da outra, e agora sei quem sou. Martha Bernays, Martha Freud, o nome não importa. Sou eu», poderia ter escrito como reflexão de tantas décadas de humilhação e desamor, esgotados que estavam há muito todo o seu brilho e inocência de rapariga.
Este é um romance sobre personagens históricas, mas não um “romance histórico”, na medida em que pretende seguir/reconstituir/aproximar-se o mais possível da realidade, obrigando-se a usar sobretudo a interpretação (que as torna visíveis), reduzindo ao mínimo a fantasia (que iria “atraiçoá-las”). Apesar da subjectividade inevitável de tudo o que é escrito, procura ser “objectivo”, porque alicerçado em documentos.
Uma vez que Freud sempre teve voz e Martha foi até 2011 silenciada e reduzida ao estereótipo de esposa, mãe e dona de casa, descobrir a sua personalidade “real” não me interessou menos do que a do homem célebre, complexo e multifacetado da sua vida. Aliás, neste caso a celebridade não importa, a matéria do livro é o diálogo de duas pessoas em igual medida importantes, que mutuamente se procuram, encontram e desencontram.
É possível que para o leitor (como no início para mim) as figuras de ambos se revelem muito diferentes do que esperaria. O que não considero uma perda, mas uma revelação surpreendente.
Teolinda Gersão
O livro já se encontra nas livrarias pelo preço de 19,99 euros.