A voz de Simone de Oliveira ecoou no recinto. Palavras que soaram, vindas de um mundo encantado. O que diziam, a letra da canção “uma noite”, um conteúdo que encaixou ali na perfeição. Mesmo sem melodia, de imediato prenderam a atenção de todos, para logo a seguir abrirem o concerto. As mesmas palavras agora cantadas por Mafalda Veiga acompanhada por um brilhante naipe de músicos.
Foi assim, com dois temas que enaltecem Lisboa, a cidade que calorosamente a recebeu, e onde celebrou nessa noite os 30 anos de uma carreira recheada de trabalhos da sua autoria, que duas horas ininterruptas desfiaram um rosário de temas deliciosos. Um público embalado e encantado acompanhou o desenrolar do concerto, ora cantando, ora com palmas ritmadas, ou gritando pedidos urgentes… “Restolho”! Ouviu-se aqui e além ao que Mafalda ia respondendo com humor, aumentando inteligentemente a expectativa.
Após o primeiro bloco de interpretações emocionadas mas sobretudo envolventes e cheias de alma, surgiram os temas partilhados com os seus convidados. Tiago Bettencourt, Rui Reininho e Ana Bacalhau. Amizade, partilha e muita empatia transpareciam em cada momento único. Ao todo seis temas de diversas origens, refletiam a participação de cada um e da combinação de saberes resultou algo de muito especial. O contributo destes ilustres participantes foi muito além da canção, deixando cada um a sua marca, tal como o fizeram na vida de Mafalda.
Clássicos como a “Planície” e o “Restolho” (tão ardentemente desejado), reservados para o encore, deixaram plateia e bancadas em êxtase absoluto. “Cada lugar teu” marcou o encerramento de um concerto que deixou tantos corações plenos de vivências e memórias revividas, vozes aquecidas graças ao entoar de canções amadas, marcos de momentos especiais.
Entre canções tantas vezes nos brindou com uma história que nos enquadrava no contexto do momento da autoria. Ainda outras palavras que nos deslumbraram e cativaram.
Sobre a criação de “O Velho” contou-nos que aos 17 anos, em Montemor-o-Novo, no caminho entre a sua casa e o Liceu a visão de um velho sentado no banco do jardim dia após dia a impressionava ao ponto de um dia decidir passar para o papel o que sentia.
“Fado”, explicou-nos, é a única canção que se atreve a chamar fado, e conta-nos que o seu tio Pedro foi quem a inspirou. (Pedro da Veiga, guitarrista de fado iniciou Mafalda na composição musical).
“Insónia”, o único tema criado às 10 horas da manhã, é fruto no seu conteúdo mas também na hora em que nasceu, de uma noite tormentosa. A dificuldade em dormir, é um mal de que padece desde que se lembra de existir. É neste momento que costuma pedir desculpa à mãe, sempre que está presente como foi o caso nesta noite, pelas noites difíceis.
Da amizade com Margarida Rebelo Pinto, veio a sugestão de interpretar “Because the Night” de Patty Smith, que partilhou nesta noite com Ana Bacalhau cujo tom roqueiro seria perfeito para este tema.
“Miúdas Malukas”, uma criação de Rui Reininho para esta noite, surgiu de uma troca de nomes pelos media entre Mafalda Veiga e Suzanne Vegga autora de Luka.
Contou-nos também que uma amiga fã incondicional do tema “Restolho”, apesar de adorar a canção achava excessivo e um pouco piroso o facto de a letra começar em francês (J’aime o Restolho), não tendo percebido o uso verbo gemer. O hilariante desta curiosidade é algo que ela nos disse não se cansar de contar.
Como estas, tantas outras histórias, Mafalda partilhou com o público e este foi mais um fator que em muito contribuiu para nos conquistar a todos.
O que me impressionou, tanto havia aqui para transmitir…
Na voz da Mafalda, sempre fresca e cristalina, menos trémula, mais firme e madura, permanece intacto o timbre específico e a dicção inconfundível.
Nas palavras, as letras de uma enorme riqueza, um respeito pela nossa língua que me sensibilizou fortemente. De tal forma que chegaram a assumir um protagonismo inesperado, tal a atenção que lhes demos, a ânsia de as ouvir sem perder uma que seja. A melodia em fundo, sente-se, está lá imponente, mas rivaliza com a mensagem, muitas vezes auto-biográfica, ia revelando sempre algo sobre a pessoa, personagem cheia de doçura e talento desde tenra idade.
Uma experiência inédita, como se fosse ali, aquela uma noite de poesia, lida, cantada e enriquecida com o bónus da música em si mesma. Uma noite de festa que se dependesse de nós não teria acabado senão com o raiar do Sol.
Embalados, saímos mais ricos deste concerto abrigado na cúpula do recinto do Campo Pequeno em Lisboa.
Obrigada Mafalda… e fazendo eco das expressões entusiásticas de vários elementos do público, “És linda!!!!”. Volta sempre.