Depois de ter vivido cinco anos em Paris, Mísia está de volta a Lisboa, onde agora reside e onde vai fechar um ciclo em relação ao último disco, Ruas (2009), cujo epílogo ao vivo terá lugar hoje, dia 17 de Dezembro, na discoteca Lux, pelas 22h00. Em entrevista ao Canela&Hortelá a cantora não poupou pormenores sobre o concerto e os projectos que tem para o futuro, que passam pelo lançamento de um novo álbum na Primavera do próximo ano.
Dividido em dois capítulos – Lisboarium e Tourists –, o último disco da fadista dedica o primerio CD ao imaginário de Lisboa sonhado de Paris (cidade onde Mísia ainda vivia quando gravou o álbum) e conta com tudo o que tem relação com Lisboa: fado, mornas, marchas, etc. No segundo CD podem-se ouvir vozes de outras culturas (como Nine Inch Nails, Joy Division, Dalila ou Camaron de la Isla) que têm uma relação trágica com o destino, como existe no fado. Este Cd também inclui a canção napolitana que deu origem ao convite do realizador norte-americano John Turturro, que levou Mísia a ser uma das protagonistas do filme Passione.
Esta noite, pelo palco, tal como no disco, o fado irá cruzar-se com marchas, mornas e sobretudo com o repertório de artistas que, apesar de não estarem associados a esse género, cantam os seus sentimentos como tal. O espectáculo – que já foi apresentado em países como Israel, Líbano, Brasil e Colômbia – contará com a participação especial de Geoffrey Burton, guitarrista que acompanha habitualmente Iggy Pop, e Mísia terá, inclusivamene, a oportunidade de desfilar ao som das marchas de Lisboa com vestuário desenhado pelos Story Tailors. “Isto é o que Lisboa é para mim e vai tudo acontecer num sítio que considero ideal, o Lux”, conclui a artista.
Mísia confessou ao C&H que está “com imensa vontade” de fazer este concerto e de se reencontrar com os mísianos, no entanto tem noção que parte do seu público, “o mais tradicional, não é do género de ir a uma discoteca”. Considerando que “são todos bem vindos”, a cantora adianta que adora este tipo de palcos: “Sou uma pessoa cosmopolita e isto tem tudo a ver com a minha contemporaneadade e com o tipo de repertório que vou fazer, que também não é só fado. O Lux fica bem para este concerto e também me fica a mim”.
Nascida no Porto, filha de pai português e mãe espanhola, Mísia é uma verdadeira artista global e considera-se “uma apaixonada por cidades”: ama a sua cidade natal, apaixonou-se por Lisboa, viveu em Barcelona, Madrid e cinco anos na cidade-luz da Europa. Em suma, considera-se uma coleccionadora de cidades, que “são uma grande inspiração” para o seu trabalho.
Regresso ao fado dez anos depois
O reconhecimento internacional da cantora, que se estreou em 1993 com um álbum homónimo, é inegável: o seu talento concedeu-lhe honrosos galardões, onde se destacam a Medalha de Vermeil de La Ville de Paris (a mais alta condecoração concedida pela Câmara da cidade) e a homenagem feita pelo governo francês, tornando-a Chevalier des Arts et des Lettres. O diário espanhol El País elegeu-a como uma das 100 figuras ibero-americanas mais importantes de 2009 e já em 2010 recebeu a Ordem de Officier des Arts et des Lettres, atribuída pelo ministro da Cultura gaulês, Frédéric Miterrand, e foi distinguida com o prémio Renato Carosone, atribuído à melhor intérprete estrangeira em Itália, a propósito do tema «Era de Maggio», um clássico napolitano gravado com o grupo Avio Travel e presente em Ruas.
No entanto, nem o reconhecimento internacional a demoveu deste seu retorno às origens, fruto da inevitável saudade tão portuguesa e da vontade de gravar aqui um novo disco, 20 anos após a sua estreia discográfica e dez anos depois do seu último disco de fado. Senhora da Noite, assim se chamará o próximo registo que será lançado na Primavera de 2011 e que irá marcar o regresso ao fado de cariz tradicional e à poesia, sendo o décimo álbum de uma prolífica carreira que conta já com 20 anos.
Começado a gravar em Setembro, o novo trabalho conta com poemas exclusivamente de autoras femininas, como Lídia Jorge, Florbela Espanca, Agustina-Bessa Luís, Amália Rodrigues e Hélia Correia. Mas o novo álbum não inclui só letras de escritoras e poetisas, mas também de cantoras, caso de Adriana Calcanhoto e de Amélia Muge, assim como da própia Mísia.
Segundo a artista, este novo trabalho “é como se fosse o irmão do Garra dos Sentidos”, que era de música de fado tradicional e de poesia. A fadista recorda que quando fez esse trabalho, em 1998, pensou que podia fazer outro disco do género mas só com poesia feminina. “Quando regressei a Portugal contactei com algumas escritoras e, há semelhançado que já tinha acontecido em Garra dos Sentidos, todas escreveram especialmente para este disco, à excepção, obviamente, dos poemas das escritoras mortas. Aliás, o ponto de honra de todos os meus discos é as pessoas que estão vivas escreverem para a minha voz e para o meu trabalho”, acrescentou a cantora.
Para Mísia, a escolha do título Senhora da Noite fica-se a dever a ser um trabalho só de mulheres, “se por um lado é quase um nome que lembra a Virgem Maria, por outro também pode ser de uma postituta. Aliás, no disco há um tema dedicado há «Mulher que está na Rua», um tema bastante actual numa altura em que tanto se fala de assuntos como o tráfico de brancas e as redes de Leste”.
Bichinho do cinema
Mas nem só de fados vive Mísia e paralelamente aos CD’s a cantora está também a escrever um livro e o script de um documentário que vai fazer sobre fado. Em Espanha interpretou o papel de narradora na História do Soldado, de Igor Stravinsky, e em Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos, interpretou o papel principal para a obra Maria de Buenos Aires, de Horácio Ferrer e Astor Piazzola, e fez de Ana I e II em Os Sete Pecados Mortais, de Kurt Weill e Bertold Brecht.
Depois da participação no filme Passione, de John Turturro, ficou na boca de Mísia um sabor e pouco e a cantora confessa que adorava receber outros convites dentro da sétima arte. “Depois dos 50 anos descobri que tenho uma grande liberdade e que não tenho que provar nada a ninguém, porque estou em paz comigo própria, portanto, quem gostar gosta e quem não gostar não gosta… já não estou muito preocupada com isso”, garante a fadista. Mísia vai mais longe e adianta que “o que tinha a fazer no fado já está quase tudo feito, até porque a matriz do que queria fazer começou com o Garra dos Sentidos, o primeiro disco de fado tradicional com poesia, que foi um trabalho conceptual que ainda ninguém tinha feito na altura”. Perante isto, a cantora afirma sentir-se “em paz e com vontade de abrir outras portas artísticas e dizer outras coisas”.
Por Cristina Alves
Fotos gentilmente cedidas pela Universal Music