Reportagem de José Magalhães (texto) e Joice Fernandes (fotografia)

Quem foi ao Parque das Nações sabia ao que ía. Houve um antes, bem badalado. A passagem por Lisboa foi só mais um ponto num mapa maior. Mas é um ponto grande. Para mim, um ponto inesperado. Tinha planos para a noite, que cancelei com entusiasmo quando recebi o convite do C&H para ir ao Pavilhão olhar a Moura.

A nossa Ana não brinca. As digressões têm uma máquina promocional bastante bem oleada, que pensa em públicos mais vastos e mais jovens do que as sexagenárias lindas que ouvem a música-emblema “Búzios” e regridem aos tempos de ouro em que mudaram a sorte de um feliz desgraçado. A Moura quer jovens e tem nisso a razão toda.

Quando cheguei ao balcão da Arena, havia povo por toda a parte. Na Montanha vê-se tudo com rigor. Casa boa, a exigência da sala, gigantesca e imponente na sua arquitetura megalómana. Nenhum partido ali reuniria o povo que veio ver a Ana, que felizmente para todos nós, é transversal e logo de todos nós.

Ana MouraProva disso encontrei logo à entrada, na rua, onde debaixo de um lampião o nosso PR aguardava sem escolta à vista, a hora de entrar no Pavilhão. Marcelo é caloroso e tem sempre uma dica personalizada, o que transforma um encontro casual numa espécie de festa em que o contemplado é abraçado e apaparicado como se fosse a melhor pessoa do mundo. Assim foi, o que deixou um par de velhinhos bisbilhoteiros à beira de uma apoplexia (“Viste, Tó?! Ele abraçou o comunista e ali ficaram os dois, em risinhos e risotas uma quantidade de tempo. Incrível!”). A quantidade de tempo terá sido um minuto e picos, mas os bisbilhoteiros morrem do próprio veneno. Eu concluí que o PR tem bom gosto e ele deve ter concluído o mesmo, pelo que foi de coração leve que subi as escadarias para entrar na catedral.

O que vi está à vista. Uma espécie de boca aberta ao fundo. Talvez a boca da Ana, com lábios vermelhos, bem aberta para conter dentro tudo o que é preciso para fazer uma banda feliz.

A espera foi estranhamente serena. As turbas dos estádios berram e aquecem pulmões com rituais bárbaros antes do jogo não menos bárbaro. Aqui não. Um murmúrio discreto, vindo de milhares de pessoas. Lembrei-me da noite em que assisti, em Salt Lake City, a uma missa na gigantesca catedral mórmon. Aqui vigora a regra um homem/uma mulher e elas dominam, o público é descaradamente feminino.

A espera acabou sem alardes. A voz de Deus pediu que os telemóveis fossem postos em modo silencioso, o que é esperto, muito esperto: a Meo oferece conectividade aos crentes, que podem assim fazer de repórteres e difundir pelas redes milhares de imagens e sons. Como não é possível comer o ovo sem partir a casca, o apelo seguinte (“É proibido filmar ou fotografar este espetáculo”) é um contrassenso total. Quem resiste a captar uns segunditos sem qualidade só para mostrar aos amigos que esteve lá?!

Entrada a matar. Grito de guitarra eléctrica primeiro. Ana nada. Entra a banda sem mostrar 1/10 avos do poder de fogo. Uma longa espera, longa, longa, longa. Entra finalmente a diva, de preto, acenando. Voz ao alto. Está alta, firme e quente. A nova melodia, do álbum Moura, é “Moura” clássica, exibindo a poderosa voz.

Segue-se uma queda no mundo murmurado das canções de ninar meninos grandes. “Ai eu”. Uma canção que se recomenda no regresso de um tempo triste, porque é um hino à esperança de re-viver. “Já dei a volta e agora canto …”. Balada de embalar, triste e alegre, para gente que tenha viajado além da dor. A assistência fica em estado zen. Deve ser isso que levou a diva a soltar uma confissão. Diz que está nervosa. Nervosa? A Ana declara-se assim, mas está atenta e de olho vivo, porque agradece, com elegância, a presença do PR (muitos aplausos).

O Meo Arena tem um tamanho colossal, mas também tem uma arquitetura de som excelente, pelo que se nota bem quando a  banda ataca um fado tropical dedicado a um amor com língua de açúcar. Batida forte. Aquilo é fado, mas também seria bom forró, bom kuduro, bom mambo. Quantanamera ou algo assim. Aplausos quentes.
Ana MouraNa pausa, com voz suave de aeroporto, a Ana fala de ancas e a gente não pode deixar de olhar para as que ela passeia pelo enorme palco. É uma enorme mulher mas parece pequenina, com ancas generosas, mas longilínea que é, notam-se q.b.

Fado e ancas? Sim. “Bater o fado”. Batia-se o pé e ondulava-se a anca nos tempos de outrora, conta a cantora e nós acreditamos. Eu ponho-me a pensar na Severa, a ondular, como se estivesse em Istambul a fazer dança de ventre. Fado e dança de ventre, why not?!

Seguem-se vénias a fadistas ilustres que vieram apoiar a Moura: Maria da Fé, Mariza (estrondosa salva de palmas!)

Se o fado se canta e chora também se pode dançar.
O que ela foi dizer! No ecrã que está ao fundo do palco vemos pés que sapateiam, palmas ritmadas, fado saltitante. Esta diva devia desfilar aos pulos pela Avenida da Liberdade. Medina, filho, estás distraído. Tu que topas tudo ainda não topaste o potencial da Ana. Aplausos.

Fumos esvoaçam, a nuvem poliédrica no teto tem sombras projetadas. A voz ondula como o fumo. A canção tem letra da Márcia Santos e chama-se “Desamparo”. Uma refinadíssima poesia que a voz de Moura veste como se estivesse nua.

Como se passa do Desamparo à alegria de um arraial minhoto? Dando um salto e mudando a sorte, afastando o escuro, entrando em cheio na luz do arraial de gente viva que não esmorece porque a vida dá solavancos.

Ana entoa a plenos pulmões um hino que tornou famoso e a assistência sabe de cor. “Agora é que é”. Um divertissement bem humorado. Brinca com um tema célebre da Amália mas ergue a voz em rajadas no refrão, cheia de força. Apela à assistência que corresponde porque é matéria dada e boa. Está ali um Portugal despojado de tremeliques, capaz de ir aos cornos do destino (Ary!).

“Foi nessa noite maldita que abri a porta à desdita(…). Precipitada e incontida expulsei-te da minha vida por uma coisa de nada”. O que é isto?! É uma história de ciúme, à antiga, por uma ninharia. É o storytelling que faz o charme do fado.  Facada no bucho do amante traidor, “desfazer o que fiz “, voltar atrás não é possível. Como é que isto acabará?! A mocinha mata-se por amar excessivamente? Não mata. Filosofa. O fado tem muita filosofia popular e quem escreveu? Maria do Rosário Pedreira. A Ana Moura tem poderosa orientadora de tese. É preciso ouvir para crer.

Quem não viveu uma cena destas foi pouco amado. “Sei que é tarde de mais”. Aplausos de gente que viveu ou gostaria de ter vivido uma tragédia amorosa por uma ninharia, que “a vida é cheia de pequenos nadas” até ao grande nada.

Estava eu nestas macabras divagações quando a melancolia foi dissipada com colheres de mel. Sombras brancas flutuam e a voz conta outra história. Amores simples não há. Enleios sem amarras doloridas também não. A faixa do “Leva-me aos Fados” continua atual. Mais uma aula de filosofia amorosa e nós ali como se nada fosse (mas algo fica daquelas aulas).

Desce sangue sobre o palco. Luz Vermelha. Agora quem comanda é a voz da guitarra. Em fado corrido (do álbum Desfado), o som acelera o pulso. Saltaríamos se a voz mandasse. Aplausos frenéticos. Saltámos sem notarmos.

De novo a guitarra, mas esboçando melodias em lentidões que lembram Paredes, mais Coimbra que Lisboa. A voz não é para aqui chamada, as cordas sabem chorar sem alardes.

Destino ou maldição pergunta finalmente a voz. “Somos dois fados desencontrados, dois amantes desunidos(…)”. Foi Amália que entrou, pé ante pé, sem anúncio prévio. “Maldição” – o hino dos hinos revive, como se fosse ontem e ela estivesse ainda na Rua de S. Bento, rodeada dos poetas.

Ora esta?! Reparo subitamente que há um bailarino que dança. Um bailador de flamenco?! Um infeliz que dá o corpo ao manifesto fadista cantando com pés e mãos. Ou será um mimo?! Um intérprete de língua gestual (improvável mas não imbecil). “A lucidez do desatino … Sem poder mudar-lhe a sorte”. Palmas. Romeu Runa ficamos a saber entrou pelo território do fado bailado. Vi isto no flamenco. Chegou a hora do fado. Why not?!

Aí está ele de novo. Agora fado corrido, tocado por uma banda forte nas cordas, violenta na batida, embalada do trote ao galope e à rédea solta. Que perigo para almas abertas a emoções fortes!

A Moura encantada foge para o camarim e deixa o bando de tocadores com o palco por conta. Deixada à solta, a banda foge para o Buena Vista Social Club. A guitarra portuguesa some, entra Hendrix ou “oye como está”. Regressa a certa altura o nosso fado picado, saltitado.

Apanharam-se sem a diva e desataram a mostrar que são bons. São. São muito bons. Poriam doida uma arena brasileira ou chinesa ou até do Panamá, sabe-se lá (fado da hora: “não vás ao offshore, Toino!”).

Momento azul. Esta toada está bem aqui, mas podia estar igualmente bem num concerto da Adriana Calcanhoto ou da Marisa Monte. Cordas a cru. O poder do acústico.
O azul continua agora sob liderança e solo do baterista que exibe um devastador poder de fogo. Um canhão, Senhor, junto de uma mulher que canta amores infelizes?!

Com tanto tambor e bateria a Ana derrubaria as paredes de Jericó sem que a voz lhe doa! Não derruba porque a banda ataca em conjunto e remata. Golo!. Feita a prova de que a banda é versátil, fica para mim evidente que se precisar de mudar de credo musical a Ana tem banda que chega e sobra. Mas não será agora. Regressa ao palco para cantar mais fado.
Reentra vestida de lantejoulas brancas num daqueles vestidos saídos directamente do Grande Gatsby. “Eu entrego”. Agora que não estão no Meo Arena podem ouvir a maldade pura que há nestes versos espelhando o que o mundo tem para todos os seres que andam à chuva (pobrezinhos dos resguardados da vida!). Depressing! Talvez por isso a Moura salta e volta à alegria minhota, mestra de emoções. “Quero o Valentim!”

A Moura será moura alentejana, mas veste bem a fúria determinada com que as minhotas marcam o seu boi. Um malhão, caros leitores (elas sabem, não é preciso ser eu a dizer) é um tufão disfarçado, exige pernas, abdominais, pulmões cheios de ar. Não é para tipos enfezados sem trabalho de membros, nem sentido do ritmo.

A Ana Moura está sozinha a malhar e ondula como se andasse por uma eira a endoidecer machos doidos, a salivar por um milho-rei com beijo garantido. Não há milho. Não há rei (há PR!) Há aplausos.

 

Segue-se Fado-rock?! Está ali a guitarra portuguesa em disputa com weeping guitars. Em Woodstock não teriam destoado. “O meu amor foi para o Brasil” é um notável tratado sobre a Diáspora e um grito de ciúme da portuguesinha que olha o mar ondulado de mulatas e outras rivais potenciais. Não tem êxito garantido no Brasil e não há baiana que perdoe à tuga rival deste calibre mortal.

Atirada esta bomba, a nossa valente portuguesa pisa o seu terreno seguro e ataca. “Leva- me aos fados”  (onde eu sossego as desventuras do amor a que me entrego!!!). É um cartão de visita e percebe-se bem porquê. É um fado enganoso. Começa logo com o refrão e corre o perigo de morrer ali, com tudo dito. Acabou. Mas não. Tem três versinhos com enredo e quando surge de novo o refrão já está em ritmo de mambo. Jorge Fernando inventou esta genial tramóia. É só o prelúdio para o que se segue e nós sabemos. A voz canta agora o seu mais célebre feitiço. “Vou mudar-te a sorte. À espera está um grande amor mas guarda segredo”. “Os Búzios”. Outra invenção do Jorge Fernando!. Ouve-se sempre com a impressão de que é de nós que a Ana fala. Por que raio nunca ouço isto sem uma descarga forte de melancolia?!  Em certo sentido estamos sempre à espera quem alguém nos diga isto.

Segue-se “Tens os olhos de Deus”. É um hino. Podia ser cantado numa arena com milhares de crentes, de todas as cores e raças. Ou num funeral de crianças mortas no mar Egeu. Desconhecia esta faceta evangélica da nossa Moura. Acaba com a frase “o tempo é curto, embarca em mim”. É só uma canção. Mas é um sortilégio: Mulher danada: “embarca em mim”.

Regressa a minhota enragée. Dança malhão em vestido de lamé, sem par mas com ar de quem poderia ter aos pés o Brad Pitt.

No ecrã brinquedos e pares que dançam. “Cada dia uma carga de trabalhos”. Dito assim, de mangas arregaçadas e saia que não roda mas ondula, não vejo que a carga deva tirar o sono ao feliz contemplado com esta turbina feminina. Grande ideia: a música serve às mil maravilhas para apresentar cada membro da banda.

Segue-se “Dia de folga”.  “Cada dia é um bico-de-obra”, mas o endiabrado ritmo do malhão leva tudo pela frente. Acabou? Não.  A diva regressa e dá a sua versão do velhinho “Sou do fado”. Veste-lhe tão justo e tão bem como o implacável vestido de femme fatale, enganosamente branco perfeito em mulheres que arrancam corações com o olhar e não têm um grama a mais dentro do tubo fino do vestido.

Está a acabar e saem cartuchos colados uns aos outros: Fura-vidas, maroto, cheio de energia, rumo à meta, em versão Rosa Mota ou CR7.Nada de tipos murchos ou pedinchões nesta canção-hino.

E… Quantamera! A verdade veio à tona no fim do show. É a nossa parte boa nos dias bons: universalismo, boa boca e muita fome de viver todas as vidas que pode haver no mundo da diversidade.

Grande final: cantiga ao desafio (com o invisível?). Fundo azul, holofotes em movimento, público com palmas em crescendo.
“Anda” – o desafio redunda noutra corrida à desfilada. Pum! Muito obrigado senhoras e senhores.

Moura é uma Ana crescida e sabida. Temos isto tudo na Net. Mas não é a mesma coisa. A corrida continua. Que não te doa a voz, pequena.

Autor:Reportagem de José Magalhães (texto) e Joice Fernandes (fotografia)
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