[dropcap]A[/dropcap] Liberdade passou pelo Coliseu dos Recreios na noite de sábado. Durante horas fez vibrar uma comunidade de militantes do sergismo-godinhismo, com o líder no palco, uma mão cheia de guerreiros do som a acompanhá-lo com batida rock e a rapper Capicua a inundar de esperança os crentes.
A aparência de missa laica destes encontros deve surpreender quem não conheça Portugal. Minutos a fio, os fiéis recordaram as canções do 25 de Abril, execraram a defunta PIDE/DGS, homenagearam Zeca Afonso, numa era em que escasseiam os entusiasmos por heróis e os atos de heroísmo. Sérgio Godinho afirmou-se mais uma vez como sobrevivente, mas não egoísta – uma espécie de representante de vivos e mortos, cuja obra é reverenciada porque sabe renovar-se.
Há muito que o Sérgio percebeu que era preciso deitar fora o traje original das canções criadas nos anos de brasa, simples em excesso e datado. Adeus às baladas gemidas ao som de violão e bateria, para salas sem som decente e plateias que dispensam ouvir (ouvem na cabeça a faixa gravada, numa espécie de playback mental apoiado no artista que abre e fecha a boca).
Agora o vestido é rock, servido por um naipe exímio e esplendidamente jovem. De preto, uniforme sem idade, o sobrevivente não denota muito a passagem do tempo. Está com a voz mais robusta do que há meses mostrou no S.Luiz. Muitos devem ter esfregado os olhos e perguntado o que anda a tomar aquele sexagenário ex-hippie, sempre interessado nas novidades da geriatria. A frase batida “o talento não tem idade” assenta-lhe como uma luva macia, porque faz tudo com naturalidade, nada de arengas políticas (só umas breves flechas no centro do alvo de vez em quando!). Dar a um espectáculo o nome “Liberdade” diz tudo. Fazer com cada canção escolhida uma prova de liberdade é mais difícil, mas ele foi pioneiro do Yes You Can e continua a poder.
Por isso abriu a rajada de canções com “Foi aos 25 dias de Abril”. Depois veio “Só há liberdade a sério quando houver/Liberdade de mudar e decidir/quando pertencer ao povo o que o povo produzir/quando pertencer ao povo o que o povo produzir”. Estamos em 2014 e o refrão reluz, sem necessidade de revisão constitucional por 2/3 dos Deputados (quantos estarão no Coliseu cheio?). Primeira alocução política em “mini-tweet”: “estamos aqui para falar do Portugal de sempre, o de futuro – porque o tem”.
Só quem não o conheça é que não antecipou que se tratava só de uma forma hábil de introduzir alusões aos “Acessos Bloqueados” que nos impedem de ter o futuro que desejamos já amanhã. Encaixa diretamente no clássico “Foi a Trabalhar”, que deu debates acesos entre militantes comunistas e radicais de esquerda quando nasceu.
Olha-se a sala e duvida-se que muita gente se lembre disso. Ficou o retrato cruel e justo da vida de quem trabalha, agora que a troika uniu na desgraça camadas médias e os do fundo da escada, todos eles percebendo na pele os verso – polaroid: “E à noite, quando adormeço/ É como fazer a viagem de regresso/para um outro dia, um amanhã mais libertado/com as correntes do passado/e a certeza no futuro./É a trabalhar/que a gente paga o jantar/mas foi a trabalhar/que a gente fez a faca para o cortar”. Seguem-se três doses importantes de catequização democrática:
1) bons conselhos (“Aprende a nadar companheiro”);
2) a memória da guerra colonial (Fotos do Fogo – uma canção do álbum “Tinta Permanente” de 1993, tanto tempo e tanta memória da brutalidade: “Eu nesta, não fiquei bem estou a olhar para o lado tinham-me dito: eh soldado! É dia de incendiar aldeias baralha e volta a dar o que tiveres de ideias e tudo o que arder, queimar!”);
3) a pedagogia a desanimados: “A Democracia é o pior de todos os sistemas/Com exceção de todos os outros / Há muitos países que julgam/Que têm democracia, inclusive, às vezes, o nosso / Não há justiça sem liberdade/E o vice-versa é também verdade/E essa é a luta, no fundo/Pelos direitos humanos no mundo).
Segue-se novo flash de regresso ao passado misturado com o presente: Os Vampiros do velho Zeca saem em batida rock pesadíssima, marcando o ritmo, adeus ar de fado de Coimbra, voz angustiada a erguer-se solitária, em tensão e dramatismo. Este cantor parece mais inspirado nos ativistas do Ocupy Wall Street ou indignados das ruas daqui e dali.
“Na Rua António Maria”, com seu ar de brincadeira o Zeca exorcizou a mudança do nome da PIDE, sem nada mudar da sua essência e costumes da coisa. A parte mais jovem do público deve ter achado piada. Quem por lá passou ainda sente arrepios. Entra Capicua, luminosa e indecentemente jovem. Como combinar Spartacus e hip hop juvenil? Reencenando o “Pode Alguém Ser Quem Não É” , como se Sérgio fosse ela e ela Sérgio? Não daria boa química. Cada um foi quem é e tudo se misturou em beleza. Ela consegue parar no tempo o “Pode Alguém” como se fosse um coro ou um eco. Ele enuncia a lição de uma das suas mais complexas canções como que bebesse água (bebeu muita no espetáculo).
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“Etelvina” foi aplaudida em delírio, embora muita gente tenha pena de desta vez o ambiente rock roubar o tom artesanal de estória de viela. Idem aspas quanto à mais recente “Tem o seu preço” (pica de novo o Sérgio-político: “a liberdade também tem o seu preço”). Entraram em bom ritmo as canções mais emblemáticas do percurso do Sérgio como “Maré Alta”, “Que Força é Essa” e outras menos conhecidas “O Fugitivo”, “Maçã Com Bicho”, sobre as praxes académicas.
Ninguém arredou pé quando o palco se esvaziou.
Valeu a pena porque foi nos encores que aconteceu o momento zen (com o “Hoje é o Primeiro Dia”) e depois o momento mágico que de vez em quando é facultado aos criadores. Foi inesperado. Já tinha baixado o santo no Sérgio que começou a exaltar a pureza e a limpeza, citando Sofia e “o Dia Inicial Inteiro e Limpo”. Eis que reentra Capicua e desata a entoar ritmicamente o mesmo apelo à pureza, à limpeza e, à Ronaldo, pontapeia de imediato à baliza do grito pela Paz, o Pão, Habitação, Saúde, Educação. O estádio levantou-se e foi coro geral, golo no centro da baliza da democracia. Podia ser um comício e não sairia melhor. Posto o que Sérgio se foi gritando: “Viva o 25 de Abril! Viva Zeca Afonso!“
Mas ficou. E aqui está. Tiremos-lhe o chapéu. Há pouca gente capaz de fazer isto.