Uma Orquestra Vermelha E Uma Criatura Mitológica Em Dois Concertos Do Jazz Em Agosto

A 39ª edição do festival Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian, deu o pontapé de saída no passado dia 27 de julho. Durante cerca de uma semana e meia, o anfiteatro ao ar livre estará repleto de sons e música, com ênfase em formações lideradas por mulheres. Do total de 15 concertos assistiemos a dois: o de abertura, na noite de dia 27, e o da noite de domingo dia 30 de julho.

O concerto de abertura ficou a cargo da formação liderada por Eve Risser, pianista e compositora francesa. Depois da White Desert Orchestra – com a qual esteve presente na edição de 2016 deste mesmo festival e que, nas palavras da própria, “Was all about snow anda Scandinavia” – Eve Risser regressa agora com a recente Red Desert Orchestra. Há diferenças assinaláveis entre estas duas formações e as respectivas sonoridades: enquanto a White Desert, para além de secção rítmica, é constituída essencialmente por instrumentos de sopro, a Red Desert Orchestra (uma formação ainda maior que a anterior) é um ponto de encontro entre a música e os músicos de tradição europeia e africana. A introdução assumida de influências da música do Mali, adquiridas pela participação na Kaladjula Band, está presente desde logo nos vários instrumentos de percussão e na forte componente (poli)rítmica dos temas.

O alinhamento do concerto é decalcado do novo álbum, lançando o ano passado pela editora portuguesa Clean Feed, e intitulado Eurythmia. Quaisquer potenciais dúvidas em relação à forte influência africana deste projecto seriam de imediato desfeitas logo ao início quando, logo após a curta introdução no tema “So” (que significa “cavalo” na língua bambara), Mélissa Hié executa um longo solo de djembe e arranca a primeira grande ovação da noite, seguida de imediato por uma frase de baixo repleta de groove. Risser, qual espectadora do seu próprio concerto, aproveita os momentos em que não tem intervenção para se levantar do piano e dançar.

Um pouco mais à frente, em “Desert Rouge”, o som do balafon faz-se ouvir em todo seu esplendor, numa orgia de ritmo e som, que acompanha a melodia do trompete e, de seguida, das várias vozes femininas em palco que, juntas, cantam uma melodia simples e cheia de cor. A terminar, Eve Risser anuncia o último tema do alinhamento, “Soyayya”, que significa “amor” em hauçá, do grupo das línguas chádicas. Risser aproveita para fazer um pequeno jogo de palavras e diz-nos que “we do (not make!) love for you”. Nas minhas notas, escrevi “solo de sax tenor do cacete!” (assim mesmo, incluindo o ponto de exclamação) e posso afiançar-vos que estas palavras, escritas atabalhoadamente num caderno sobejamente rabiscado, espelham adequadamente a prestação da saxofonista Sakina Abdou.

Avancemos até domingo, dia 30 de julho, pelas 21h30, altura em que o projecto Ekhidna da guitarrista norueguesa Hedvig Mollestad subiu ao palco do anfiteatro ao ar livre. Com uma longa experiência a tocar em trio, Mollestad partiu dessa formação e acrescentou-lhe uma teclista, um baterista/percussionista adicional, assim como a portuguesa Susana Santos Silva no trompete, ao mesmo tempo que abdicou de baixista. O resultado é uma espécie de power trio em versão tuning: a base é sensivelmente a mesma, mas a potência é (ainda) maior, fruto do maior arsenal instrumental à disposição. A ausência do baixo é colmatada pelo som do teclado e pela própria Mollestad que, amiúde, acaba por assegurar uma função de apoio aos solos de trompete e teclado.

Em retrospectiva, o curto tema “No Friend But the Mountains”, calmo e introspectivo, com que encetaram a performance, parece querer enganar os mais incautos: de repente, sem qualquer advertência, a guitarra de Mollestad atira furiosamente o riff de “A Stone’s Throw” (estou convencido que os ZZ Top ficariam contentes acaso tivessem sido eles a descobrir este riff) e, logo a seguir, toca a melodia aguda e acutilante em uníssono com o trompete.
Mollestad pega numa folha de papel e dirige-se ao microfone. “Listen Carefully For I Shall say This Only Once” diz-nos, relembrando a célebre frase da personagem da série Alô Alô, antes de iniciar a leitura, em português. Agradece a nossa presença, apresenta os membros da banda, manifesta a vontade de regressar aos palcos nacionais assim que possível.

O alinhamento procede, numa mistura de elementos de rock – e não é rock qualquer, é rock pesadão, daquele que não é para meninos e que convida as mãos a executar o gesto dos corninhos – jazz e alguma música electrónica. Pelo meio, a contrastar, a balada “Slightly Lighter”, com uma bela introdução de guitarra.

Na mitologia grega, Ekdhina (ou Equidna, na versão portuguesa) era uma criatura com cabeça e tronco de mulher e cauda de serpente: casou-se com o monstro Tifão e, juntos, tiveram muitos monstros. É assim esta formação de Hedvig Mollestad: uma fusão de elementos e mundos diferentes, que resultam em criações sui generis e diferentes.

Autor:Por Daniel Carvalho / Foto Facebook da Fundação Gulbenkian
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