1986. O ano começa com a entrada de Portugal, juntamente com a Espanha, na Comunidade Económica Europeia. Mário Soares ganha a segunda volta das eleições presidenciais. Um muro (ainda) divide Berlim ao meio e Ronald Reagan ocupa a Casa Branca. A União Soviética lança a estação especial Mir e, poucos dias depois, no Congresso do Partido Comunista, o Secretário-Geral Mikhail Gorbatchev profere as palavras Glasnost e Perestroika, termos que irão definir o seu mandato. Nasce o primeiro vírus de computador e o reactor 4 da central nuclear de Chernobyl explode. No cinema, África Minha ganha o Óscar de melhor filme e vemos Tom Cruise pronunciar a célebre máxima “I feel the need… the need for speed” em Top Gun. Na rádio, Dionne Warwick relembra-nos que “That’s what friends are for”. Disputa-se o Campeonato do Mundo do México.
É difícil, senão praticamente impossível, condensar a importância dos acontecimentos ocorridos num dado ano num simples parágrafo – há necessariamente eventos e situações relevantes excluídos. Para os propósitos desta crónica, há uma ocorrência de monta que não foi referida: foi neste já distante ano de 1986 que o quarteto de Brandford Marsalis, o veterano saxofonista americano, foi constituído.
“Boa noite. Obrigado”, diz Brandford Marsalis, ao microfone, para gáudio do público, com um sotaque meio abrasileirado, assim que sobe ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. De seguida, apresenta os membros da formação. Eric Revin, no contrabaixo, e Joey Calderazzo, no piano, são companheiros das últimas duas décadas (bodas de prata?); Justin Faulkner, na bateria, é a mais recente aquisição da formação, se é que ainda nos podemos referir a esta aquisição como recente, já que Faulkner se juntou aos restantes três em 2009. Serve esta última frase para, não só elencar os membros do quarteto, mas também dar conta da estabilidade da relação entre os mesmos, uma característica a que se irá aludir mais à frente (já lá vamos).
O programa da noite desta noite é muito simples: no panfleto que é entregue aos espetadores quando entram na sala, o setlist vem discriminado (ainda que com a advertência de que está sujeito a alterações – e coincide, quase totalmente, com o novo álbum do quarteto, The secret between thes hadow and the soul.
O arranque fica a cargo do contrabaixo de Eric Revis, que toca o riff de “Dance of The Evil Toys”, da autoria do próprio, enquanto os restantes membros soltam algumas gargalhadas até chegar a altura de eles próprios se juntarem. O tema é mais do que enérgico, frenético talvez seja um adjetivo que melhor se ajuste. Faulkner, que já havia tirado o blazer antes de se sentar à bateria, descarrega golpes frenéticos sobre os pratos e timbalões, quase como se estivesse a desempenhar uma rotina de ginásio.
Após um solo de uma intensidade brilhante, Marsalis aproveita o hiato da sua participação no tema, enquanto Calderazzo executa o seu solo, para se dirigir ao fundo do palco – onde normalmente se coloca a observar os demais, quando não tem intervenção – e aproveita para tirar o seu blazer. Findo o solo de piano, é a vez de Calderazzo se contorcer um pouco enquanto luta para tirar (adivinharam) o blazer e, logo após o sucesso da operação, deposita o mesmo atabalhoadamente sobre o tampo do piano. Nesta fase, em que tanto a banda como o público estavam devidamente aquecidos, pareceria sensato reduzir um pouco a intensidade. Talvez por isso a escolha do segundo tema da noite tenha recaído sobre Cianna, da autoria de Joey Calderazzo.
Mais do que a capacidade técnica de cada um dos monstros em palco, sobre a qual apenas poderia chover no molhado, prefiro destacar a sua cumplicidade. Tal como os cônjuges que completam as frases e pensamentos uns dos outros, as décadas de colaboração destes quatro são evidentes na fluidez e facilidade como interagem e se complementam. Até mesmo nas exclamações e exortações em relação às performances alheias, assim como nos risos e gargalhadas contagiantes que, aqui e ali, se ouviram.
Quando reflete sobre a abordagem de alguns colegas de profissão em relação ao número de colaborações, Marsalis põe em evidência um trade-off interessante: se, por um lado, participar em vários projetos diferentes pode trazer ganhos adicionais oriundos da exposição a diferentes músicos e formações, por outro lado, inflige o custo de tocar com pessoas com as quais, necessariamente, existe uma relação menos sólida e menor à-vontade. Para Marsalis, este custo é superior àquele benefício o que, no limite, significa que, para verdadeiramente explorar algo de novo, é necessária a rede de segurança que a cumplicidade oferece e que lhe permite tocar no limite, constantemente, sem receio. Algo que sente não faria caso não conhecesse da forma que conhece as pessoas que o acompanham.
No miolo do concerto, o único tema que não faz parte do álbum, uma versão divertida e bem-disposta do clássico “On the sunny side of the street”, repleta de kicks e acentuações. Imediatamente antes, houve lugar a um pequeno momento de um misto de indignação e comicidade. Calderazzo toca sozinho (haverá melhor definição de solo?) a interpretar “Life filtering from the water flowers”. Os restantes companheiros fitam-no de mãos apoiadas a descansar sobre os respetivos instrumentos, quando um toque de telemóvel estridente se faz ouvir pelo auditório. O pianista interrompe a sua intervenção, algumas vozes exprimem o seu agastamento. Eric Revis dirige os olhos para a plateia e meneia a cabeça ao som do irritante toque, em jeito de gozo. Até que o ruído incomodativo finalmente termina e o pianista retoma onde havia parado.
Findo o sétimo tema do set, tivemos direito à versão de “The Wind Up”, de Keith Jarrett. Os quatro músicos ainda haviam de regressar ao palco uma vez mais, mas apenas para uma curta despedida, com uma vénia, sem aceder aos pedidos de mais música. Talvez para que fosse ainda mais claro que não iriam voltar a pegar nos instrumentos, já envergavam novamente os blazers com que haviam iniciado a noite.