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Sérgio Godinho levou LI-BER-DA-DE ao S. Luiz

sReportagem de José Magalhães (Texto) e Joice Fernandes (Fotos)

Palco preto, fundo preto, solo preto. A primeira coisa que te fisga o olhar é a palavra escrita a vermelho. Penduradas, caindo do tecto, as sílabas separadas: LI-BER-DA-DE .

Li no primeiro plano,”ber” no segundo plano à mesma altura, “da” em baixo de li, “de” em sequência . Agrupadas assim no canto superior esquerdo do palco negro, as letras parecem uma coisa frágil, pequenina, acossada e empurrada para a esquerda extrema e alta. Ou então um sol vermelho, sincopado.

Entra Sérgio, tranquilo como um operário da voz que chega  ao  trabalho. Entoa,  também ele sincopadamente, o verso “Foi para isto se fez o 25 de abril”.  Enérgico vestido de preto, black on black, martela sílabas.

No fim fala de um mundo (o nosso, parece) cheio  de insuficiências, “mas também de esperança, que tem muitas vezes o acesso bloqueado”.  É a deixa para  a canção-locomotiva “Tem o acesso bloqueado”. Uma letra sombria, que exorciza o bloqueio . “Entre fazer e não fazer sempre sobra algum trocado”.

Sérgio Godinho trouxe  uma jovem guarda pretoriana de toada rock, que traduz em batida moderna velhas linhas melódicas cujo sucesso é reinventado: “só há liberdade a sério quando houver a paz o pão,  saúde, educação…”.

A transfiguração, à   Bruce  Springsteen, tem um enorme poder, entre crying guitars, batida fortíssima, aplausos ritmados.

Prólogo para a entrada do Jorge Benvinda: “É a trabalhar que a gente paga o jantar, mas foi a trabalhar que a gente fez a faca para o cortar… braço a braço somos muitos….”. A velha canção que fazia estremecer muito coração de esquerda bem comportada (“a faca, senhores, era necessário falar da faca, ainda julgam que queremos dar uma uma naifada aos burgueses todos, alguns podem ser aliados, é preciso cuidado,camaradas, que o radicalismo desune o povo! Esse Sérgio tem uns repentes faquistas preocupantes”).

A malta nascida depois do 25 que sentirá ao ouvir estas alusões? Mistério, talvez não saiba que nós tínhamos estas discussões em torno das letras do Sérgio, um teso que se estava nas tintas para mandarins e cortava a eito nas letras e na vida. A malta toda aplaude, cada qual com a sua leitura da mesma canção.

“Maré alta” engrena diretamente e sai em dueto feroz (“a liberdade está a passar por aqui” (“Defendamo-la”, diz o Sérgio,entre aplausos).
Prelúdio para “Fotos, fogo!”. Intimista, quase declamada, é cantada ao som do piano. Quase cinematográfica, é o desfolhar de um horrendo álbum de memórias: “Chega-te a mim mais perto da lareira… Aqui andava a incendiar aldeias”. Uma melodia doce para contar o dia a dia dos massacres na guerra colonial. “Já foi há muitos anos e ainda as mãos geladas… A morte dorme parada nessa morada”.

A canção é recriada involuntariamente, por um engano no acompanhamento, que leva a improvisar. Sérgio brinca, assume e explica o engano. Ri com o episódio, afinal tão inesperado como a guerra criticada.

Regressa o  som cosmopolita, grosso de cordas e batida. Uma das mais belas canções sobre a “Lisboa que amanhece” e sai limpa e ritmada . “Já tudo pode ser tudo aquilo que parece, na Lisboa que amanhece”. Sim, naquele tempo já havia travestis em Lisboa, ninguém os cantou com tanta humanidade.

Pausa. Mudança de tema. Há anos, em 2001, fez uma “canção com bicho”, para denunciar a praxe. “Esta canção tem que reviver”(Com mil diabos! Desta não tenho memória. Que andavas a fazer em 2001? Tinhas 15 anos, pequena, eu estava numa de governante, que grande estás, dando palmas ritmadas, “há quem ache graça à praxe”, lá, lá, lá). Confesso-te, querido Sérgio, que a ideia é boa, mas a canção não é das que a gente aprende a cantar.

Ops! O Sérgio está sem óculos e não consegue ler um texto. Começa a contar a estória de uma canção que o Zeca não chegou a cantar. Na rua António Maria Cardozo, sede da Pide, mesmo aqui ao lado… (“Não apaguem a memória!”, palmas!).

Sensação estranha, ouvir 40 anos depois uma canção que criticava o marcelismo, o tal que, em vez de mudar a coisa, a rebaptizou, ficando refém da guarda, a DGS, que não o salvou na hora H.

Muda a luz. Fundo branco, liberdade a negro. “Os vampiros” em ritmo rock pesado: “eles comem tudo”, guitarras gritam, coro sublinha,”eles comem tudo e não deixam nada”. Vampiros com creeping guitars, santo Deus, ele vai ao inferno para transfigurar as oldies but goodies.

Pausa curta. Entra Maria João Luís, de negro, esguia. Declamação perfeita e impiedosa de um poema-estória inquietante, que evoca tempos de perseguição, nossos e universais, de ontem, mas também dos dias de hoje:

Um homem corre na noite
é uma imagem banal
podia ser em Madrid
ou Johanesburgo, ou em S. Paulo
ou Budapeste, Nova Iorque
ou Hollywood
ou é claro em Portugal
um homem corre na noite
é uma imagem banal

Porque foge? De onde vem?
porque olha para trás inquietado?
será soldado? vagabundo?
criminoso? ratoneiro?
será apenas o primeiro
dos que vão fugir com ele?
foge p´ra salvar a pele
só a sua? a pele dos outros?
a pele clara ou a escura?
quanto tempo vai durar a sua fuga?
quanto dura? o que espera?
o que espera o homem- fera
se chegar a quem o espera?
alguém o quer? alguém se acende
alguém o chora?
alguém por quem ele chorou
chorará por ele agora?
alguém que nunca o trairá
e se sim, onde será?

Um homem luta contra o sangue
que derrama
e diz: valeu a pena?

É impossível
não é possível
correr tanto
e pensar tão
lucidamente
o coração
não aguenta
a cabeça também não
porque tenta
ultrapassar os seus limites?
provavelmente
é por vontade de viver
(quente quente …)
que ultrapassa os seus limites
«Estamos quites!»
diz para o seu coração
«Ainda não, ainda não …
sentes que valeu a pena?
se te obrigam a fugir
mais te obrigam
a chegar junto de ti ” diz ela.

Valeu a pena? – conclui Sérgio e o S.Luiz aplaude-os como se tivessem acabado de viver em palco A Invenção do Amor. Valeu a pena? Valeu! Luís  sai, de punho erguido.

Sérgio ataca com suavidade “Eu fui ao fundo de mim, ao fundo do mar, no corpo de uma mulher… bonita”.

O revolucionário não desprezou nunca o erotismo (olho a plateia povoada de jovens: “rapazes, sabeis lá quantos meninos foram feitos ao som desta canção que nos mandava ir ao fundo de uma mulher que, nesses preparos  íntimos, era sempre a mais bonita, já que estava ali, gentilmente disposta a ser fundo do mare nostrum e parir um bébé feito com uma musiquinha tão doce!).

Entra Gisela João, em couro preto, descalça, perfeitíssima Etelvina. Afinal era ela a menina abandonada. Tramada de cantar, a melodiazinha, feitinha para a voz do Sérgio, a Gisela só pisa firme na parte final, o dueto converge em beleza e alívio. Não consegue tratar o  Sérgio por tu (“ele é uma instituição”, explica e a gente percebe perfeitamente o que ela sente).

A instituição autoriza-a a cantar uma cançao a seu pedido expresso. A canção da Rita sai-lhe cristalina e talhada à faca.

Sérgio deixa-me dizer-te isto: a miúda não te roubou a noite, mas comprovou que são felizes os que têm a sorte de ter descendência decente. “O coveiro que o diga e quantas vezes se apoiou na enxada e o coração  quantas vezes bateu para nada”. Ai, Gisela naquele tempo a gente não sabia que nasceria em Barcelos, a Rita que o Sérgio evocava, sempre impressionado. Como é que a gente podia imaginar que serias tu, assim loira, de pés descalços, vestidinho curto, preto, a brilhar sob holofotes?!

Logo Sacode a magia cantando, vigorosa, uma marcha-fado que o Sérgio lhe escreveu.
“Tem o seu preço não ter um pouso certo, andar à solta”. E não é que ela  ajeita a voz, adptando-a às sinuosas torções melódicas à la godinho e aguenta a gincana a preceito ?! Uma  mocinha, Senhor, que depois fica no palco a marchar de pés nús, numa coreografia de discoteca minhota, tocante pela simplicidade desarmada, ela a dos tops da moda, numa de marjorette simples,  por amor ao sexagenário que pula desalmado no palco.
Reparo atentamente no dito sexagenário: parece o Ney Matogrosso em versão lusitana, macho sem lantejoulas nem penas, sem rugas chocantes nem plásticas mal amanhadas, ainda cabeludo, quase sem pança. 40 anos depois, é obra!
Acabou o show. Quase duas horas e ninguém notou…
Palmas. Assobios da praxe.

 

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Discursa Regressa Godinho,  o rapaz do meu tempo, que comprou o tempo.
“Que força é essa”,  num encore vigoroso. Som com um órgão à procol harum a liderar, litúrgico,  batida forte em stacatto: ” que força é essa que te põe de bem com outros e de mal contigo?!  Pergunta tramada num país com record de desempregados e precários.

Como se não fosse nada. Lembra o 25 de abril  e apela à alegria, à não perda da inocência primordial.
A descrença no sistema muitas vezes justificada, não deve fazer esquecer que “a democracia é o pior de todos os sistemas com exceçao de todos os outros” (lá onde esteja, Churchill, deves estar a pensar que só um tuga seria capaz de fazer virar canção uma das suas máximas predilectas!).
Agora é o fim. Mas ainda há tempo para “hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”.  Com mil diabos, velho, conseguiste transformar “uma frase batida” num hino de todas as gerações, resistente aos anos, renovável “para enfrentar a vida de fio a pavio”. E outra maré cheia virá , hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Longa vida, pá! Gostava de ver o Zeca ao pé de ti! Talvez seja aquele tipo de boina que te aplaude babado de gozo no camarote ao fundo.
Falso fim. Regressa o som clássico da viola, dueto com Benvindo. “A noite passada fui passear no mar”. Uma canção que nos lembrava a Lucy in the sky with diamonds. Será que ele também tomou LSD, para ter o sonho que a letra descreve, com “mar, montes, disseste ainda bem que voltaste”…
A malta não larga. Sérgio Godinho arranca com a posologia infalível: “paz, pão, saúde, habitação”. Só há Liberdade a sério quando houver…
Vi beatitude na cara de velhos, novos, assim-assim.  A alegria da Liberdade, ali. A poucos metros da antiga casa dos medos, atulhada de presos e pides.

Bom 25 de Abril, Sérgio! Abençoado sejas tu que nos dás assim o santo sacramento da música!

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