O Pequeno Auditório da Culturgest enche-se que nem uma carruagem de metro na hora de ponta, uma autêntica lata de sardinhas. O pretexto para este encontro – acaso fosse preciso um – é o recente disco, editado no início de Novembro do ano passado pela editora alemã ENJA Records, de Rita Maria e Afonso Pais: Além das Horas.
Trata-se de uma colecção de canções – por vezes com letra, por vezes instrumentais – que congregam os diferentes idiomas e percursos dos músicos. Afonso Pais e Rita Maria – assim como o quinteto de base composto por António Quintino no contrabaixo, Luís Candeias na bateria, e Alberto Sanz ao piano – trazem sobretudo o seu passado jazzístico. Porém, põem-no ao serviço de uma certa portugalidade impressa nas canções, que funciona como um elemento comum ou aglutinador, como uma argamassa das diferentes personalidades do conjunto relativamente extenso de outros convidados. Todos a remar na mesma direcção. Um bom exemplo disso é o de Bernardo Couto, na guitarra portuguesa. Para Afonso Pais, a razão de convidar este guitarrista prende-se com o facto de Couto ser um dos poucos improvisadores da guitarra portuguesa, num estilo muito próprio que não é nem jazz nem vem directamente só do fado.
E no entanto, o que nos espera é diferente. Quer dizer, sim e não. O palco do Pequeno Auditório tem apenas um banco e uma cadeira para Rita e Afonso, o duo de voz e guitarra a partir do qual este projecto e estas músicas surgiram. A dinâmica é inevitavelmente diferente da do disco: mais crua e mais intimista, tocado da mesma forma como ensaiaram na sala de Afonso, com mais espaço para os dois músicos e a cumplicidade entre os dois a saltar à vista.
Percorrem os temas do disco. Começam com os “Olhos azuis” e pelo tema cujo título dá o nome ao disco. Mais no miolo do concerto, entre outros, “Quase inocente”, a co-autoria com JP Simões. E “Cáscaras-Quás-Quase”, inspirado em Bernardo Sassetti, o pianista português tão precocemente desaparecido que, após um solo na total acepção da palavra de Afonso, termina com um quasi-diálogo (ou dois monólogos?) entre os dois músicos. Ainda em “Pensamentos de mágoa”, um poema de Fernando Pessoa com música de Edu Lobo. E o “Tema para a Rita” que, como nos explicam, é, literalmente, do Afonso para a Rita. Presenteiam-nos com material inédito: “O primeiro coração é de corda”, tema que surgiu a Afonso a propósito de uma viagem.
No regresso ao palco para o encore da praxe, há alguma indefinição em relação ao que vai ser tocado. Em contraste, a dedicatória é pronta e assertiva: dedicado a nós, público. Talvez pelo título ter sido gritado da plateia, terminam com uma belíssima versão de “Demais” de António Carlos Jobim. Demais.